Justiça

UFMS expulsou 35 cotistas suspeitos de não serem ‘negros o suficiente’ em 7 anos

Medicina e Direito concentraram controvérsias, e 22 dos alunos conseguiram na Justiça a vaga de volta


O advogado Leonardo Duarte e o estagiário Luan Alckmin (Henrique Arakaki, Midiamax)

Apesar de terem ingressado na UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) pelo sistema de cotas raciais, 35 acadêmicos foram alvo de procedimentos administrativos durante os cursos e acabaram expulsos da Universidade. Desse total, 22 conseguiram retornar às aulas por meio de liminares, segundo levantamento realizado pelo Jornal Midiamax, por meio de dados obtidos pela Lei de Acesso à Informação.

Em meio à polêmica, a Universidade mudou o sistema de autodeclaração e agora faz os alunos passarem por uma Banca de Avaliação da Veracidade da Autodeclaração antes de efetivarem a matrícula. Os acadêmicos foram alvo dos procedimentos da Universidade após uma denúncia anônima protocolada no MPF (Ministério Público Federal).

Advogado de parte dos estudantes, Leonardo Avelino Duarte explica que em duas semanas, os acadêmicos foram expulsos. “Tinha aluno com quatro semestres cursados. O MPF mandou um ofício pedindo providências e o que a Universidade fez foi expulsar em menos de um mês os alunos”.

Os casos foram levados à Justiça Federal de Mato Grosso do Sul, que concedeu a maioria das liminares para recolocar os alunos na Universidade.

Mudança de regras - Antes, bastava que o acadêmico assinasse a autodeclaração de pretos ou pardos no ato da inscrição. Após as denúncias de que os acadêmicos estariam burlando a regra, por não serem negros, a UFMS adotou a Banca de Avaliação da Veracidade da Autodeclaração.

“No edital da inscrição desses alunos, bastava a declaração. Mas após o pedido do Ministério Público Federal, a UFMS quis adotar outro critério, não previsto e, com isso, excluiu acadêmicos do quadro com o curso já em andamento, dois anos depois da matrícula”, diz o advogado.

Segundo a UFMS, foram expulsos 1 aluno de Administração, Ciências Contábeis, Engenharia de Software, Geografia, Pedagogia e Zootecnia; dois de Odontologia; três de Engenharia de Produção; quatro de Engenharia Civil; oito de Direito e 12 de Medicina.

O advogado garante que nenhum se passou por negro, como nos casos de grande repercussão nacional, para tentar burlar o sistema de cotas. Em um dos mais chocantes, um servidor do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) de Minas Gerais teria tingido a pele e usado lentes escuras para fazer uma foto e assumir um cargo de técnico.

Um ano e meio depois, após ser denunciado, ele foi alvo de procedimento administrativo e afastado pelo então presidente do INSS, Renato Rodrigues Vieira.

Não era o caso dos alunos se passarem por negros, mas a maioria se identificava como ‘parda’. “São filhos de negros, pessoas de famílias negras, com a pele um pouco mais clara. Mas não foram consideradas negras para o sistema de cotas. O que, a meu ver, é um absurdo. O que é preciso para ser negro? A UFMS vai pedir exame de mapeamento de ancestrais? Não dá para entender”.

Exclusão e bullying - Os acadêmicos acabaram sendo alvo de bullying, segundo o advogado, após as denúncias. “O que aconteceu é que muitos não foram considerados negros o suficiente para entrarem pelo sistema de cotas. Mas o que é ser negro ou pardo no Brasil? O edital deixou isso claro?”, questiona.

Os acadêmicos acabaram sendo alvo de bullying dentro das turmas. Em um dos casos, a defesa anexou aos autos mensagens de deboche em relação aos acadêmicos que entraram pelo sistema de cotas da UFMS.

Em um dos casos, acadêmicos de Medicina se referem a uma caloura comparando-a a outra, que teve a autodeclaração indeferida, afirmando que ela ‘honraria a linha’ da colega.

“Isso daí é sacanagem mesmo. Vou mandar um ajoelha caloura pra essa v***”, disse colega de sala em aplicativo.

“Quero f*** com cada um irregular nessa p***. E os que cagam para pensamentos diferentes vou rir quando se ferrarem”, mostra outro trecho do diálogo.

O assunto é tão intrigante que motivou o estagiário do advogado, Luan Alckmin, a fazer seu TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) com o tema. “Bancas de verificação de condição autodeclarada: o critério fenótipo e a segurança jurídica”.

“No processo da primeira banca de verificação da UFMS, a Universidade não se preocupou nem em preservar a identidade dos candidatos. Quando os alunos assinaram a autodeclaração, ficou claro que eles poderiam passar por verificação posterior. Mas nunca foi dito quais critérios seriam usados. O meu TCC fala sobre concursos públicos que usam a banca e sobre o fenótipo ser ou não o meio adequado de verificação para que a pessoa ingresse pelo sistema de cotas”, diz o acadêmico, que apresenta o trabalho em novembro deste ano.

Arquivamento no MPF - Apesar da quantidade de contestações, o MPF (Ministério Público Federal) afirma, em nota, que o inquérito civil que tramitava no órgão para apurar possíveis irregularidades do método de identificação do componente ético-racial dos candidatos inscritos nas cotas estava em conformidade com a jurisprudência do STF (Supremo Tribunal Federal) e com os parâmetros do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. Confira a nota na íntegra:

“Tramitou na Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão o Inquérito Civil n° 1.21.000.000393/2017-22, que teve por objeto: “Apurar a (ir)regularidade do método de identificação do componente étnico-racial dos candidatos inscritos no sistema de cotas para ingresso no ensino superior, implementado na UFMS em cumprimento às determinações contidas na Lei n° 12.711, de 29 de agosto de 2012”. Durante as investigações, foram conduzidas inúmeras tratativas junto à UFMS.

Em 12 de junho de 2019, o referido procedimento investigatório foi arquivado, concluindo-se que o sistema de verificação da autodeclaração prestada por pessoas pretas, pardas ou indígenas, atualmente implementado pela universidade, encontrava-se em conformidade com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e com os parâmetros estabelecidos pelo Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. Também já foram analisadas, no âmbito da tutela coletiva, notícias de irregularidades pontuais envolvendo o sistema de cotas em processos seletivos/concursos públicos específicos daquela instituição de ensino, com base em representações formuladas na Sala de Atendimento ao Cidadão e no Sistema de Protocolo do MPF, cujos procedimentos foram igualmente arquivados diante da ausência ou correção de irregularidades”.